domingo, 29 de junho de 2008

A vinda do navio

Como poderei ir-me em paz e sem pena?
Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta cidade.
Longos foram os dias de amargura que passei dentro de suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão?
Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham, desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me sentir oprimido e entristecido.
Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a própria epiderme que arranco com minhas mãos.
Nem é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração enternecido pela fome e pela sede.
Contudo, não posso demorar-me por mais tempo.
O mar, que chama a si todas as coisas, está me chamando, e devo embarcar.
Pois permanecer aqui, enquanto as horas queimam-se na noite, seria congelar-me
e cristalizar-me num molde.
De bom grado levaria comigo tudo o que está aqui.
Mas como fazê-lo?
A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram asas.
É isolada que deve procurar o éter.
É também só e sem ninho que a águia voará rumo ao Sol.
(Kahlil Gibran Kahlil)

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